A derrubada do regime de Bashar al-Assad na Síria estava atrasada há muitos anos. No entanto, as tragédias na Síria não acabaram. Israel bombardeou centenas de locais ao redor do país e tomou controle de uma quantidade considerável de terra no sudoeste, enquanto as forças turcas estão ameaçando atacar o nordeste da Síria para realizar limpeza étnica. Assim como em 2019, quando Donald Trump deu ao presidente turco Recep Tayyip Erdoğan luz verde para invadir o país, apelamos às pessoas ao redor do mundo para se envolverem em ações de solidariedade para desencorajar as potências mundiais de permitir que isso aconteça.
Para humanizar pelo menos uma das inúmeras pessoas cujas vidas estão em jogo aqui, oferecemos as reflexões de um voluntário anarquista russo no nordeste da Síria que participou do experimento revolucionário em Rojava por muitos anos. Ele obsverva os mercenários russos saírem deste país onde eles infligiram tanto mal, esperando que um dia ele possa ver os mesmos soldados deporem suas armas em sua terra natal, assim como os mercenários de Assad fizeram.
Para mais atualizações sobre a situação no norte da Síria de internacionalistas anarquistas no local, você pode seguir este canal de Telegram em russo ou consultar o site do Tekoşîna Anarşîst.
Escrevo estas linhas sentado no chão frio e empoeirado, encostado na parede. Eu realmente quero dormir. Nas últimas duas semanas, perdi toda a noção de que horas são — não tive, muitas vezes, a chance de estar na superfície. Dormir em um colchão fino em uma sala comum não é a rotina a que estou acostumado. Muitas vezes adormecemos em horários diferentes. O sono é interrompido por pessoas andando de cômodo em cômodo, informações sendo transmitidas por telefone e rádio, alarmes sendo disparados por causa de possível ataques do SNA1 contra nossa posição. Congelar sob uma faixa de céu aberto, forçando meus ouvidos sobre as batidas do meu próprio coração — posso ouvir drones turcos no céu? Há salvas de artilharia, há mísseis voando?
E então eu sento aqui, abraçando minha metralhadora e envolvendo meu rosto em um cachecol. E as longas horas de espera se arrastam.
Claro, penso muito sobre a situação que se desenrolou rapidamente na Síria. Não consigo me livrar da sensação de que estamos à beira de uma grande guerra. No entanto, aqui, a visão das aldeias tranquilas ocupadas por combatentes pró-turcos do outro lado da linha de frente pode enganar. Tudo parece calmo; os campos entre nós estão vazios; nada se move.
Na realidade, isso é o resultado de vários anos de guerra. O equilíbrio de precauções que se desenvolveu ao longo desse tempo: armadilhas, minas, câmeras de vigilância e patrulhas de ambos os lados — tudo isso estreita as possibilidades de ação ofensiva. Percebendo isso, sinto uma tensão invisível que se estende até o horizonte na direção do inimigo.
Esta situação é periodicamente abalada pela chegada de projéteis de artilharia e tiros. As pessoas nas outras posições ao nosso redor estão em uma situação semelhante. Há uma cidade atrás de nós, e os combatentes pró-turcos podem tentar passar por nós direto para ela. Todos em nossa posição estão prontos para se defender contra qualquer ataque.
Em contraste com a realidade diária da nossa parte da frente, somos capazes de assistir às notícias. Os eventos estão se desenvolvendo em uma velocidade alucinante. O regime de Assad caiu, Manbij está sob ataque do SNA, Deir ez-Zor está nas mãos do SDF2 para impedir que o Estado Islâmico capturasse a cidade — e agora Shehba foi rendida, Deir ez-Zor foi entregue ao HTS,3 há uma luta feroz em Manbij e a retirada subsequente. Quase um milhão de pessoas foram forçadas a deixar suas casas devido a novas hostilidades. Israel tem bombardeado a infraestrutura militar por toda a Síria. Muitas informações contraditórias e incorretas estão circulando em vários canais. Está claro que uma guerra de informação e uma guerra psicológica estão sendo travadas. Isso tem a intenção de influenciar as percepções das pessoas sobre a situação, moldar as discussões e o clima geral, bem como a cobertura que outros meios de comunicação fornecem, sem mencionar seus efeitos sobre os participantes dos próprios eventos.
As notícias sobre a adoção da bandeira tricolor verde-branco-preto com três estrelas vermelhas como bandeira da nova Síria pós-Assad ocasionaram discussões especiais entre nós. A Administração Autônoma Democrática do Nordeste da Síria, conhecida como Rojava, se considera parte desta Síria. Considerando a história desta bandeira, que se tornou um símbolo da revolução no país e a bandeira da revolta contra Assad em 2011, este movimento não é surpreendente.
Também há contradições. O HTS colocou esse símbolo em circulação. Mas ele não pertence a eles. Agora, uma oportunidade se abriu para tornar o projeto de confederalismo democrático uma opção possível para toda a Síria e além. Politicamente e de muitas outras maneiras, Rojava é mais forte e mais rica do que o HTS. Este último acaba de ter uma onda de sucesso, enquanto em Rojava, temos experiência e uma ideia bem desenvolvida. As SDF também prefeririam uma solução política para a situação na Síria. O comandante-chefe das SDF, Mazloum Abdi, disse que ninguém quer guerra aqui, exceto os aliados representantes pró-turcos.
Observando tudo isso, alguns pensamentos rápidos e talvez ingênuos passam pela minha cabeça. Imagens de cidades libertadas do regime mostram pessoas celebrando a queda do regime. Notei que quase não há mulheres visíveis entre elas. Isso parece um contraste significativo com o que é visível em muitos dos comícios e marchas em Rojava.
Também me passou pela cabeça que poderia ser possível ver lugares antes inacessíveis na Síria. Depois de muitos anos de ditadura, viajar de Rojava para Damasco, por exemplo, sem “rotas especiais” parecia impossível. E quanto aos milhões de pessoas que nasceram e foram criadas aqui? E quanto à população curda, que por muito tempo nem sequer recebeu passaportes? E quanto àqueles que nasceram depois que seus pais foram forçados a emigrar da Síria? Ou as gerações que não conheceram nada além do governo e da guerra de Assad?
Essas reflexões me trazem de volta à situação na Rússia. Testemunhando a ampla oposição síria, milhões de pessoas assistindo ao que está acontecendo com esperança, fazendo as malas para voltar para casa, é difícil não pensar: como será quando a mesma coisa acontecer na Rússia?
O regime de Assad foi garantido pelo poder de Putin; sua queda já mudou completamente a posição do exército russo aqui. Seguindo os soldados do regime de Assad, que perceberam que não estavam mais em perigo com a velha ordem e abandonaram seus equipamentos, armas e posições, o exército russo também está partindo. Observei com sentimento especial as colunas russas passando por mim em uma das posições. Olhei nos rostos dos soldados, tentando entender se perceberam que, por todos esses anos, eles estavam aterrorizando a população com bombardeios, eles entregaram Afrin ao exército turco, eles mantiveram o regime de Assad vivo — e agora tudo isso acabou. A ajuda militar russa à ditadura síria acabou. Não acho que aqueles soldados perceberam que estavam olhando nos olhos de um homem do mesmo país que eles, mas que escolheu o outro lado das barricadas.
Como provavelmente acontecerá na Rússia um dia, a queda do regime aqui criou um espaço que deve ser preenchido por um novo sistema político. O HTS, a antiga Al-Qaeda na Síria, que está fazendo o possível para parecer “apresentável”, dificilmente conseguirá organizar um novo estado sem um colapso rápido ou uma nova crise. Embora tenham derrubado Assad, o HTS não é uma força de libertação em termos de seus valores. Talvez na Rússia também veremos o regime entrar em colapso graças a forças que estão longe dos valores proclamados pelo experimento de Rojava. A libertação das mulheres, a coexistência de vários grupos étnicos e outras identidades, cada um com sua própria autonomia, comunas — hoje, na Federação Russa, esses não são tópicos especialmente populares, mesmo no meio da oposição.
Seja qual for o caráter da força que derrubou Assad, ela despertará esperança nos corações de milhões. Também abrirá a porta para novas elites governantes e seus interesses.
Esperança e entusiasmo são escassos na luta contra o regime de Putin hoje, mas são necessários para o sucesso. Às vezes, teremos que suportar profundas contradições e decepções.
Entre minhas reflexões, assuntos cotidianos e a organização da defesa, nossa vida diária não sofre da falta coisas familiares. Um camarada árabe, que passou por quase todas as frentes da defesa da revolução, despeja açúcar no bule de chá com conchas cheias, rindo e dizendo, “Dims” (Kurmanji para “xarope”). Uma gata chamada Myshka vagueia entre nós e brincamos que ela faz parte da defesa. Um camarada ao meu lado escreve diligentemente em árabe e mostra seu trabalho aos camaradas árabes, que pacientemente verificam sua ortografia.
O nascer do sol está chegando. Estamos prontos, o chá forte e doce é revigorante e um novo dia está por vir. Os eventos estão se movendo muito rapidamente — a cada duas horas, algo novo e inesperado acontece. O que nos espera hoje? Não sei. Mas o pensamento de que estamos defendendo a revolução e seus ideais junto com pessoas de todas as etnias e idades de Rojava, que cada um de nós está fazendo uma contribuição, me dá força e clareza. Espero que a sobrevivência de Rojava traga vitórias ao nosso movimento anarquista, que, na minha opinião, pode aprender muito aqui na Síria.
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Exército Nacional Sírio, uma força aliada [proxy] a serviço do governo turco. ↩
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Forças Democráticas Sírias (FDS), o exército da Administração Autônoma do Norte e Leste da Síria. ↩
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Hay’at Tahrir al-Sham, uma coalizão de grupos insurgentes islâmicos sunitas do norte da Síria. O HTS evoluiu da Jabhat al-Nusrah, que começou como um braço da Al-Qaeda na Síria. ↩